Alice imprime a própria identidade na herança nobre da família Caymmi
Em momento de reconhecimento, cantora apresenta pelo Brasil o elogiado show com o repertório da tia Nana e planeja retomar projeto com sambas do avô Dorival.

Em um certo Natal da família Caymmi, Alice Caymmi apareceu com vestido e perfume iguais ao de Nana Caymmi. Longe de causar constrangimento, a coincidência de figurinos e cheiros foi celebrada como mais um atestado da profunda identificação que irmanava sobrinha e tia. Tal irmandade tem sido aplaudida nos palcos do Brasil desde 19 de junho, data em que Alice Malaguti Caymmi, cantora carioca de 35 completados em março, estreou o show em que dá voz ao repertório de Dinahir Tostes Caymmi (29 de abril de 1941 – 1º de maio de 2025), a Tia Nana do título desse recital de voz e piano que circula por cidades como Rio de Janeiro (RJ), Olinda (PE), São Paulo (SP) e Porto Alegre (RS) ao longo deste semestre. “Por mais que a gente tenha convivido pouco, a gente se reconhecia no mundo, se entendia como um par. Ela sabia que eu tinha herdado parte da identidade dela e era tão apegada a isso que tinha o desejo de que eu tivesse o mesmo repertório, fosse pelo mesmo caminho. A gente tinha uma identificação que ia além da música. É uma ligação espiritual”, sentencia Alice, em entrevista exclusiva a Flo. Embora tenha sido apresentada ao Brasil por Nana em 2001, ao gravar com a tia a música “Seus olhos” para o álbum “Desejo”, Alice trilhou o próprio caminho, buscou o próprio repertório e delineou a própria identidade ao se lançar como cantora. Editou o primeiro álbum em 2012 com músicas autorais e, em 2014, virou a sensação da música brasileira com o álbum “Rainha dos raios”. Neste disco, produzido por Diogo Strausz, Alice ia de dramático samba-canção de Maysa (1936 -1977) à canção teatral do grupo indie Tono, passando por músicas de Caetano Veloso. “Acho ‘Rainha dos raios’ o meu verdadeiro primeiro disco, o marco zero. No primeiro disco, eu me via como compositora. No ‘Rainha dos raios’, eu me assumi como intérprete e aí a coisa funcionou. Porque era mais verdadeiro para mim. Eu estava entregando mais como intérprete do que compositora, apesar de achar bom isso (compor) e de fazer isso bem inclusive. O meu sonho é ser uma grande intérprete das minhas próprias canções. Eu ainda não encontrei esse caminho do meio e acho que vou chegar lá. É questão de tempo”, projeta a artista, filha de Danilo Caymmi e sobrinha de Dori Caymmi, com quem passou horas ao telefone na véspera do encontro com a Flo no terraço do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro. Além de intérprete, Alice tem a rara qualidade de ser o que ela caracteriza como “versionista”, termo que, no caso, designa cantora que põe o próprio D.N.A. em músicas já conhecidas. “Eu pego uma música e a refaço, rearranjo. Sou boa de arranjo, de recolocar as coisas. No ‘Rainha dos raios’, eu previ uma tendência de colocar o funk nos apartamentinhos”, orgulha-se Alice, aludindo à festejada recriação do funk melody “Princesa” (1997), standard do cancioneiro do funkeiro MC Marcinho (1977 – 2023). Em 2025, já reconhecida como grande cantora e com currículo que inclui gravações com nomes como Michael Sullivan e Pabllo Vittar, Alice planeja expandir nos próximos cinco anos a herança que recebeu da família Caymmi, símbolo de nobreza na dinastia da música brasileira. Assim que diminuir a demanda do show “Para minha tia Nana”, cuja versão de 2025 quase nada tem a ver com o show homônimo estreado em 2018, a artista retomará o projeto do disco e show calcados nos sambas do avô, um certo Dorival Caymmi (1914 – 2008), cujo cancioneiro já havia sido abordado pela neta em 2014 em show de pegada roqueira, “Dorivália”. “Eu poderia ter sido oprimida por esses parentes gigantes. Mas não fui. E agora o foco é esse: minha herança, o legado da minha família. Já tenho individualidade e reconhecimento suficientes para me apossar das minhas raízes. Vou trazer essa herança para o meu trabalho. Isso é muito doido e requer muita coragem, mas falta de coragem nunca foi um problema na empresa Rainha dos Raios Produções”, graceja Alice, com o entendimento de que o cancioneiro de Dorival Caymmi pode ser bem absorvido pela geração Z. De volta à cidade natal do Rio de Janeiro (RJ), após sete anos morando em São Paulo (SP) (“Voltei por questões afetivas”), Alice Caymmi nunca faz o estilo diva. Ao contrário: ressalta a realidade dura da sobrevivência no mercado das artes. “A gente vive de show e fecha mês a mês. Não tenho dinheiro de gravadora. Sempre tive de dar o meu jeito”, alerta. Tanta consciência da dureza do cotidiano profissional jamais dissipou a leveza impressa na aura de Alice. Assim como a tia Nana, Alice é capaz de terminar uma música pesada e, no instante seguinte, disparar tirada espirituosa que faz a plateia cair na gargalhada. A leveza, garante, também vem no combo da herança familiar. “Isso vem da minha avó Stella Maris. Era uma gênia da comédia. Vovô era mais rascante, agressivo. Já minha vó Stella era pessoa engraçada, hilária. Meu pai, Danilo, também carrega essa leveza na vida”, revela. Da tia Nana, tão rabugenta quanto divertida, Alice parece ter herdado bem mais do que a leveza e a voz encorpada com a qual a sobrinha já chamava atenção na infância quando cantava jingles, temas de novelas e músicas de videogame. Outro dia, vendo vídeo de Nana com a Banda Nova, de Tom Jobim (1927 – 1994), Alice se surpreendeu ao ouvir a tia dizer frases que anos depois reverberam inteiras na boca da sobrinha, em mais uma prova do elo transcendental que conecta Alice Caymmi e Nana Caymmi, grandes cantoras do Brasil.