Literatura _ 23 maio _ por Simone Raitzik

Heloisa Teixeira: a necessidade da reinvenção

Uma das principais pensadoras do feminismo brasileiro, a escritora Heloisa Teixeira aposentou o sobrenome famoso - Buarque de Hollanda - para adotar o nome de origem materna.

Capa da publicação em destaque

No ano passado, aos 85 anos, a escritora Heloisa Buarque de Hollanda resolveu mudar - a começar pelo nome. O motivo dessa reviravolta era um só: não havia sentido em ainda usar o sobrenome do ex-marido, com o qual não mais se identificava. “Eu me casei em 1961, era uma outra realidade, a mulher não tinha escolha. Um dia, olhei o brasão dos Hollanda, na fazenda da família, e pensei ‘meu Deus, não tenho mais nada a ver com isso, já me separei há tempos”, conta. Heloisa assumiu então o Teixeira, legado de sua mãe, há cerca de um ano, às vésperas da posse na Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 30, que pertenceu à Nélida Pinon. “Queria mesmo homenageá-la”, dispara. Esse processo de rever o passado, de olho na linguagem do presente, é parte intrínseca de seu trabalho como professora, escritora e socióloga, dona de uma vasta obra literária e acadêmica que analisa os movimentos contemporâneos nas artes e cultura. “A minha pesquisa se desenvolve em cima do momento. Analisei os anos 60, os anos 90, o feminismo, a periferia. Tudo que vai aparecendo, eu vou assimilando. O meu aqui e agora completou 85 anos. E haja o que lembrar e contar”, explica. Velhice é um tema que Heloísa reverencia. Apesar de sentir na pele e no corpo o peso da idade, ela diz viver intensamente esse momento - inclusive revela que foi com 79 anos que teve coragem de começar a fazer suas (várias) tatuagens. “Conversando uma vez com a Mariana Ximenes, ex-nora, falamos da vontade de se tatuar, algo que já vinha rondando a minha cabeça. Achei que tinha passado a hora, mas ela me deu o toque fundamental: agora sim é o momento. Caiu a ficha. Fiz a aranha da Louise Bourgeois e vários desenhos de autoria dos netos. Acho que não vou ter muito tempo para me arrepender”, brinca. Para ela, ser velha é ousar, liberar os direitos autorais para que todos tenham acesso à sua obra, ser ouvida de forma plena e, acima de tudo, ter um lugar reconhecido na sociedade. ”Repare que isso é uma novidade, porque até onde eu sei, mulheres e homens desejavam permanecer jovens pelo resto da vida. Haja harmonização facial e plástica. Entendi que ser velha é um privilégio, é acumular quilômetros de experiência e possuir um entendimento do que importa e antever o que está por vir”, revela. E cita exemplos, como Gilberto Gil que, depois dos 80, incorporou filhos, netos e noras nos shows e turnês, assim como Caetano - “ambos souberam valorizar a família e o afeto, sua história de vida”, afirma. “Por décadas, vivemos a constante necessidade da reinvenção. Agora entendemos que há sabedoria e legado nessa convivência entre gerações”, acrescenta. E decreta: “A coisa que acho mais bonita da velhice é praticar a disponibilidade. Nesse momento da vida, quero ser pirateada, copiada, plagiada”. Com dezenas de livros publicados - recentemente lançou “Rebeldes e Marginais: cultura nos anos de chumbo” pela Ed. Bazar do Tempo -, Heloisa, mestre e doutora em Literatura brasileira e pós doc em Sociologia da cultura, se diz dedicada, hoje, 100% à literatura escrita por mulheres. “Estou viciada. Evito dizer que existe uma linguagem feminina porque obviamente não há essa diferença. O que eu acho é que a mulher vem apresentando um universo desconhecido. Um mundo que ainda não tinha sido contado em verso e prosa. E isso é fascinante”. Sua entrada na ABL também tem a ver com essa forte ligação com o social e o feminismo já que, para aceitar a vaga, ela antes consultou as companheiras do grupo que reúne, desde 2009, na Universidade das Quebradas, laboratório de tecnologias sociais baseado na troca de saberes com a periferia, ligado à faculdade de Letras da UFRJ. “De repente, tive a percepção de que ia entrar na academia junto com ‘as quebradeiras’. As feministas disseram a mesma coisa, que se viam incluídas. Isso foi decisivo. No discurso de posse falei que assumiria a cadeira de número 30 trazendo um monte de gente junto. E estou levando isso bem à sério”. Helô, como é carinhosamente conhecida entre alunos, família e amigos, é também mãezona que reúne os filhos toda semana em sua casa, e diz que, não importa onde esteja, sempre há uma mesa generosa, com espaço para todos se espalharem e conversarem. “Adoro mesas. Elas são fundamentais para haver um bom diálogo”, pontua. Dois de seus filhos - Pedro e Lula Buarque de Holanda - são sócios da produtora Conspiração e, recentemente, Lula finalizou “Helô”, um documentário sobre a mãe, reunindo memórias e um acervo pessoal focado na intimidade da convivência familiar. “Falo coisas estranhíssimas nas entrevistas e praticamente nada sobre o meu trabalho. Vão me ver como a mãezona mesmo. Uma superexposição radical”. Há ainda um segundo longa, “O nascimento de H. Teixeira”, de Roberta Canuto e produção de Clélia Bessa (em fase de finalização), que retrata de forma mais nítida a figura profissional, os muitos anos de trabalho e vida acadêmica - ela é professora emérita na Escola de Comunicação da UFRJ. “Mas também tem um tom bem pessoal e minha leitura dos anos 60, 70 e 80, em vários aspectos da sociedade. Não tem jeito. Vida e obra, no meu caso, sempre caminharam de mãos dadas". - Produção, captação de imagens e edição do vídeo: Felipe David Rodrigues. Imagens adicionais: Academia Brasileira de Letras, O Globo, Companhia das Letras, Bazar do Tempo, Veja, Carpe Diem, Língua Geral, Universidade das Quebradas e Heloisa Teixeira.