Joyce Moreno saboreia a rebeldia com bossa
A artista carioca apronta álbum com músicas inéditas, cultiva o lado espiritual e comemora a liberdade de ter aberto o próprio caminho na música brasileira.

Outro dia, Joyce Moreno postou no story do Instagram a reportagem de revista alemã que a perfilava como “A rebelde da bossa nova”. Do alto dos 77 anos, festejados em 31 de janeiro, a artista carioca achou graça, mas entendeu a ótica do jornalista. “Nunca fui estritamente da bossa nova. Sempre fui de buscar outros caminhos, mesmo pisando nessas fundações que a bossa nova e o samba me deram porque bossa nova, de certa forma, samba é. Meu trabalho é mais aberto. Se eu tivesse me atido ao repertório e ao estilo da bossa nova, talvez não tivesse obtido tanto reconhecimento no exterior”, reflete Joyce em entrevista a Flo, concedida na sala de reunião da gravadora Biscoito Fino, pela qual a cantora, compositora e violonista gravou álbum com músicas inéditas previsto para ser lançado neste primeiro semestre de 2025. Aplaudidos por plateias dos Estados Unidos, da Europa e do Japão, país onde a artista é tratada como popstar, os mencionados “outros caminhos” da música de Joyce Moreno incluem o balanço do samba-jazz e passam naturalmente pelo toque personalíssimo do violão da artista, elogiado por Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) e enaltecido por Vinicius de Moraes (1913 – 1980), que detectou no violão da instrumentista “grande sentido harmônico e um ritmo exemplar”. Ao violão, somam-se o canto elegante e um cancioneiro refinado, feminino, com uma batida diferente da sintetizada em 1958 por um certo João Gilberto (1913 – 1980). “Esse tripé cantora-compositora-violonista existe por causa da música. Uma coisa não existe separadamente da outra. Quando eu canto, minha voz é um instrumento. Quando eu componho, minha composição é a expressão de um pensamento musical. É tudo uma coisa só”, ressalta Joyce. Em 1967, quando Joyce tinha 19 anos, a discípula da bossa nova exerceu a rebeldia juvenil no palco de um festival da canção ao dar voz a um samba-canção, “Me disseram”, composto na primeira pessoa do feminino. Ousar dizer o próprio nome como mulher era atitude que nenhuma compositora tinha tomado até então. Pois Joyce incluiu na letra e cantor um verso com a expressão “Meu homem”. Foi o que bastou para que o patriarcado moralista da imprensa da época tachasse de “vulgar” e “imoral” a jovem e bela morena recém-saída da adolescência vivida na “Copacabana velha de guerra”, como Joyce apresentou o bairro carioca no título da parceria com Sergio Flaksman que ela própria lançou em 1969 e que Elis Regina (1945 – 1982) regravou em 1970. Anos depois, o samba “Feminina” (1979) e as letras escritas pela parceira Ana Terra para músicas de Joyce como “Essa mulher” e “Da cor brasileira” – gravadas por Elis Regina e por Maria Bethânia, respectivamente, no mesmo ano de 1979 – carimbaram de vez com o rótulo “feminino” o cancioneiro de fato feminista da artista porque Joyce foi pioneira ao desbravar uma trilha hoje seguida por incontáveis mulheres, inclusive por tocar um instrumento desde os anos 1960. “Muita coisa mudou de lá para cá porque temos muitas compositoras falando no feminino e muitas mulheres instrumentistas. Por outro lado, acho que nada mudou. Há grandes retrocessos. Voltamos muito para trás”, lamenta a artista, se referindo especificamente à decisão do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de restringir e até tentar proibir o uso de termos como “mulheres” e “feminismo” em documentos e sites oficiais do governo. Em cena desde 1964, ano em que iniciou profissionalmente a carreira como cantora, influenciada pela antecessora Sylvia Telles (1935 – 1966), a “rebelde da bossa nova” quer continuar exercendo a liberdade, inclusive no gênero das letras. “Depois desse tempo todo escrevendo no feminino, eu não me sinto mais obrigada a escrever nesse gênero. Posso escrever (uma letra) de qualquer jeito, conforme o que eu estiver sentindo e a música estiver pedindo”, reforça Joyce, marcando posição sem alterar o tom suave como se porta no mundo. Gravada pelas maiores cantoras do Brasil e por cantores como Emilio Santiago (1946 – 2013), a compositora se considera “bem servida” de intérpretes. Nem por isso deixa de registrar as próprias músicas. “Eu gosto de fazer a versão do autor. O autor tem sempre a versão original, a leitura de como ele fez a música. São leituras diferentes”, observa Joyce, grata por ter músicas eternizadas nas vozes imortais de Elis, Gal Costa (1945 – 2022) e Maria Bethânia, cantoras referenciais da música brasileira. “A gente tem uma floresta inteira de cantoras fazendo sombra. A Bethânia faz sombra. A Gal faz sombra. A Elis faz sombra. O Tom (Jobim) faz sombra. Somos uma geração de compositores que vieram do Tom. A música brasileira tem essa coisa maravilhosa. É uma geração passando o bastão para outra...”, celebra a artista, encantada com a música de jovens sucessoras como Antonia Medeiros e Katarina Assef. Favorável ao reconhecimento da bossa nova como Patrimônio Imaterial do Mundo pela Unesco (“Porque ela é, como o jazz e outros gêneros também são”, justifica), Joyce Moreno viaja por esse mundo de forma quase incessante. Fez shows nos Estados Unidos no início do ano e tem agendado concerto com orquestra na Dinamarca para outubro. Os convites nunca param e geralmente são aceitos pela artista, que sempre cruza as fronteiras do Brasil com o parceiro de vida e música, Tutty Moreno, grande baterista com quem Joyce divide palcos, mesa, camas e aviões há 48 anos. “Eu adoro o que eu faço. Eu me divirto tocando. A gente faz umas turnês meios malucas. Só que agora, quando volto para o Brasil, já chego mais cansada, com a língua de fora. Porque é puxado. Mas a música me dá muito prazer. Cada show é diferente. Tutty tem uma frase que eu adoro. Ele diz que arte é rascunho. É mesmo. A gente abraço o rascunho o tempo todo. E isso dá prazer, rejuvenesce, traz saúde, alegria... E tem o outro lado, o dos boletos. Não dá para me aposentar. Eu baseei meus planos para o futuro no direito autoral. Mas essas plataformas não pagam direito autoral”, queixa-se, ecoando reclamação recorrente de quem tenta viver do comércio da música no universo digital. Com Tutty, Joyce celebra caminhada harmoniosa – “Com momentos maravilhosos e outros difíceis. A vida é isso...”, resigna-se – e cultiva o lado espiritual. Ambos são espíritas, adeptos da religião kardecista desde 1979, mas pouco falam publicamente disso. “O espiritismo é um dos pilares da nossa vida. Mas falo muito pouco disso para não fazer proselitismo e não colocar a minha religião como a única que tem razão. O mundo é ecumênico”, sentencia Joyce Moreno, sem perder a fé na música e na vida.