Marinheiro audaz
Chef franco-brasileiro Ricardo Lapeyre faz sucesso no circuito carioca ao abrir o primeiro restaurante com produtos oriundos da pesca sustentável

Ricardo Lapeyre imprime diariamente o cardápio do Escama, restaurante carioca aberto em fevereiro de 2021, em sobrado no bairro Jardim Botânico. Em junho, o chef retirou o mexilhão do menu. Como o marisco estava momentaneamente inacessível para os pescadores que lhe fornecem diariamente a matéria-prima do restaurante especializado em peixes e frutos do mar, Lapeyre preferiu suprimir a iguaria do cardápio porque se recusa a comprar peixes e mariscos congelados, produtos da pesca de arrasto, prejudicial ao meio-ambiente marítimo. A atitude ilustra a militância cotidiana desse aclamado chef franco-brasileiro, carioca com cidadania francesa, herdeiro do talento gastronômico do pai. Ricardo é filho do também reverenciado chef francês Claude Lapeyre, responsável pela excelência da cozinha da casa noturna Hippopotamus, reduto de artistas e empresários dos anos 1970 aos 1990. “A militância é importante. Tem que passar isso para o cliente, para a mídia”, ensina. Aos 33 anos, Ricardo Lapeyre saboreia o êxito do primeiro voo solo. Com o fechamento do Languiole, restaurante do Museu de Arte Moderna (MAM) em que Ricardo comandou a cozinha por cerca de seis anos, o chef seguiu o movimento contrário do mercado gastronômico na pandemia e abriu o próprio restaurante, com o capital de sócio investidor que permanece oculto, mas que nunca escondeu a admiração pela comida de Ricardo, de quem já era cliente. “O Escama é uma casa que estava na minha cabeça há muito tempo. É uma ideia que foi sendo maturada. Quando o Languiole fechou, eu disse para mim mesmo: ‘ou eu volto para França ou eu abro o Escama agora. Abrir um restaurante na pandemia é fazer o movimento contrário, mas esse momento também abre oportunidades. O mercado está mais barato. O setor está mais unido”, ressalta o chef. Ricardo Lapeyre decidiu permanecer no Brasil com a bagagem adquirida na França. Quando tinha 17 anos, Ricardo passou para espécie de Enem francês e foi para Paris. Na época, já tinha certa experiência, por ter começado a trabalhar aos 14 anos com o pai Claude, nos finais de semana, para aumentar a mesada. Em Paris, Ricardo teve que arrumar emprego enquanto estudava hotelaria e gastronomia. Entre os estudos e o expediente em bistrô francês, o então aprendiz se formou na escola de hotelaria Jean Drouant e trabalhou na Alain Ducasse Formation, instituição desse conceituado chef francês. Na sequência, atuou em hotel de Borgonha, região francesa, e em restaurante de Bruxelas, Comme Chez Soi, um dos mais conceituados da Bélgica. Ao todo, foram seis anos na Europa. De volta ao Brasil, Ricardo cumpriu expediente em restaurantes carioca como Le Pré Catelan – então ainda como colaborador do chef Rolland Villard – e começou a ser notado quando comandou a cozinha do Brasserie Lapeyre, restaurante francês situado no Centro do Rio de Janeiro e logo reconhecido como um dos melhores do gênero, prestígio que rendeu a Ricardo prêmios como o de ‘Chef do ano’. Desde então, Ricardo pavimento caminhou bem-sucedido até desaguar no Escama, restaurante que idealizou em 2012, quando, em Paris, imaginou versão carioca do L’Avant Comptoir de la Mer, restaurante especializado em peixes e frutos do mar. O Escama tem alma carioca sem abrir mão do D.N.A. francês do chef e proprietário. “A base francesa está dentro de mim. O Escama não seria um restaurante autoral, com a minha assinatura, se não tivesse essa base”, reconhece Lapeyre. A assinatura de Ricardo Lapeyre no Escama está impressa tanto nos uniformes – feitos com detalhes em escama de pirarucu, peixe da Amazônia, por bordadeiras do Projeto Fio, empreendimento social feminino que atua em favelas cariocas como as do Complexo da Maré – como na busca diária por produtos frescos que permitam a elaboração de pratos como o arroz de polvo, o ravióli de lagostim e o risoni de lula. “Já fui mais ligado à estética. Hoje sou mais ligado ao produto do que à técnica. É uma questão de filosofia empresarial”, avalia Ricardo, que compra somente peixes e frutos do mar oriundos da pesca sustentável e vendidos diretamente por pequenos pescadores, sem passar por peixarias. Para manter o ideal de oferecer no Escama uma cozinha autoral de frutos do mar, com produtos frescos e excelente custo-benefício, o chef cumpre rotina exaustiva. Às seis da manhã, já está em contato virtual com pescadores, que lhe mandam vídeos com os produtos em ofertas naquele dia. Até às 8h, Ricardo já falou com todos os pescadores e fez as compras do dia. Entre 10h e 11h, chega ao restaurante para cuidar do almoço. Quando dá, volta para casa à tarde para descansar um pouco antes de retornar para o Escama para cuidar do jantar. Geralmente, quando o chef sai do restaurante, já é por volta de meia-noite. “Eu opero a casa, não me restrinjo à função de chef. O meu maior trabalho é a compra de insumos, a aquisição dos peixes. Trabalho somente para os pequenos. Isso vale também para a aquisição do arroz, para os produtos do hortifruti”, reforça. Na mesa do escama, peixes brancos pouco usuais em restaurantes marítimos, como o prejereba (“O teor de gordura dessa peixe é o ideal”, ressalta Lapeyre) e a piraúna, são servidos em pratos brancos com poucas intervenções do chef e com guarnições que podem ser a da Vovó Lapeyre (batata sautée, cogumelo Paris, cebola calabresa, salsa e alho) ou a coleslaw brasileira (couve manteiga e palmito da região serrana), entre outras. “Nós, cariocas, estamos de frente para o mar, mas o nosso consumo de peixe é muito baixo. Sempre gostei de cozinhar frutos do mar e percebi a falta de oferta dessa comida no Rio. Em Lima, por exemplo, comi muito bem. Aqui as pessoas não sabem que os peixes brancos têm nomes, são diferentes, têm particularidades”, observa Lapeyre. O caráter militante do chef se traduz nos preços acessíveis do cardápio do Escama, ainda que o público-alvo do restaurante seja uma clientela mais refinada, conhecedora dos prazeres da boa mesa. “Não tenho como vender um prato de camarão, de verdade, que não seja de cativeiro, por menos de 100 reais. Mas o Escama tem prato na faixa de 60 reais. Não aplico grandes margens de lucro no restaurante”, avisa Ricardo Lapeyre, o marinheiro audaz, sempre a serviço da militância.
