Música _ 05 fevereiro _ por Mauro Ferreira

Marcos Valle: símbolo da modernidade jovial da bossa brasileira

O músico é a mais completa tradução da permanente contemporaneidade da bossa nova, gênero do qual é ícone em escala planetária por conta do sucesso mundial do “Samba de verão”.

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Em julho de 2023, quando Marcos Valle iniciou a “80th Birthday World Tour”, houve na mídia internacional quem ressaltasse espanto com a efeméride. “Falavam que era a turnê daquele que chegou aos 80 anos e ninguém acreditou”, diverte-se o artista carioca, hoje com 81 anos, em entrevista a Flo, no conforto do apartamento em que vive com a mulher, Patrícia Alví, em rua tranquila do Recreio dos Bandeirantes, na zona oeste da cidade natal do Rio de Janeiro. Sim, o fato de Marcos Kostenbader Valle ter se tornado octogenário em 14 de setembro de 2023 ainda provoca incredulidade pela aparência sempre jovial do cantor, compositor, pianista e arranjador carioca que roda o mundo como símbolo da modernidade perene da bossa brasileira. “A jovialidade vem comigo. É como se minha alma fosse assim. Meu espírito é assim”, sentencia Valle, que mantém a rotina saudável de caminhar pela praia, de fazer ginástica aeróbica e um pouco de musculação. Aos olhos de um público jovem e interessado que inclui as cantoras Céu e Liniker, das quais o artista já se tornou parceiro nos correntes anos 2020, Marcos Valle é a mais completa tradução da permanente contemporaneidade da bossa nova, gênero do qual o artista é ícone em escala planetária por conta do sucesso mundial do “Samba de verão”, a mais famosa parceria de Marcos com o irmão letrista Paulo Sérgio Valle. Lançado no Brasil em 1964, em gravações dos conjuntos Os Catedráticos (sem a letra escrita na linha sal, céu, sol, sul que caracteriza a bossa nova no imaginário nacional) e Os Cariocas, “Samba de verão” cruzou as fronteiras do Brasil em 1996 ao ser gravado nos Estados Unidos pelo organista Walter Wanderley (1932 – 1986) e, na sequência, ganhar as vozes de vários cantores, já como “Summer samba (So nice)”, com a letra em inglês escrita pelo compositor norte-americano Norman Gimbel (1927 – 2018). Por conta da explosão do samba, pode-se dizer que Marcos Valle vive há 60 anos um verão que parece eterno. Faz shows no Brasil – como as temporadas que o levaram a ocupar os palcos do Blue Note do Rio e de São Paulo entre janeiro e fevereiro – e faz turnês pelo mundo, sem se apegar ao passado. Ao contrário. Valle lançou em 2023 álbum com músicas inéditas no mês em que completou 80 anos, “Túnel acústico”, e já enxerga no horizonte de 2025 novos discos (“São mais de um”, adianta) e mais uma turnê pelo mundo. “Minha cabeça é cheia de música. É preciso deixar sair umas para entrar outras. Se não, eu fico maluco. Meu tempo é hoje”, ratifica o cantor, dono de bossa singular. “A música que eu faço tem a base da bossa nova, mas é uma bossa misturada, recheada com todas as influências que eu tive”, ressalta o compositor, sagaz ao criar no piano um groove que o diferencia no vasto universo da bossa brasileira. Foi esse groove que, redescoberto pelos DJs estrangeiros nos anos 1990, repôs a música de Marcos Valle na pista, ampliando o alcance da bossa misturada do artista. “Minha música atraiu uma garotada que gosta de dançar, não o bate-estaca, mas uma música melódica e harmônica que tenha ritmo”, diferencia o dono da bossa. As influências da bossa misturada do artista são diversas. A formação musical de Marcos Valle inclui a música clássica, as marchinhas de Carnaval e o refinado samba-canção de Dolores Duran (1930 – 1959), provável inspiração para a criação de pérolas como “Preciso aprender a ser só” (1965), outra obra-prima da parceria de Marcos com o irmão letrista Paulo Sérgio Valle. Sem falar na música de Luiz Gonzaga. Pré-adolescente, o futuro músico se encantou quando ouviu, aos dez anos, o “Xote das meninas” (1953), sucesso da época do reinado de Gonzaga e do baião na música brasileira. O encantamento reverbera década depois nas músicas compostas por Valle com pegada nordestina. Mas tudo mudou para Marcos Valle – e para a música do Brasil – quando a bossa nova surgiu em 1958, com João Gilberto (1931 – 2019) revolucionando o som com canções de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994), o Tom. Como toda a geração de compositores e músicos que alcançou projeção nos anos 1960, Marcos Valle foi instantaneamente contagiado pela bossa em 1958 sem imaginar que se tornaria um ícone dela dali a poucos anos e que se relacionaria com Tom Jobim como amigo e colega de profissão. “Tom é a base de tudo. Tive a sorte de conviver muito com ele, tanto no início da minha carreira como na época em que fui para os Estados Unidos quando o ‘Samba de verão’ estourou lá e ele estava gravando com o (Frank) Sinatra. Aprendi com Tom a cuidar dos detalhes, a ter um carinho em torno da música. Quanto mais eu me aproximava dos 80 anos, mais eu cultivava esse cuidado com os detalhes”, lembra Marcos, com o carinho de um discípulo aplicado ao mestre soberano. O discípulo se tornaria, ele próprio, um mestre quando misturou a bossa carioca, na segunda metade da década de 1960, com o soul e o funk que conquistavam o Brasil, exportados pelos Estados Unidos. Assim nasceu “Black is beautiful” (1971), soul em que Valle abraçou o slogan “Negro é lindo” para promover o orgulho negro em música que ganharia a voz de Elis Regina (1945 – 1982), cantora que personificava a antítese da bossa nova. E assim, junto e misturado com todas as gerações, fazendo música e/ou tocando tanto com uma conterrânea contemporânea como Joyce Moreno quanto com um rapper das quebradas cariocas como Marcelo D2, Marcos Valle cruzou a fronteira dos 80 anos e segue em atividade como um ídolo reverenciado por todos, mas com os pés no chão e uma dose crescente de espiritualidade. “A música que faço é espiritual. Procuro ajudar a natureza, já que a natureza me ajudou”, resume aos incríveis 81 anos Marcos Kostenbader Valle, símbolo da sempre nova bossa do Brasil.