Michele De Lucchi: testemunha de uma revolução
Personalidade icônica do mundo da arquitetura e do design, o italiano Michele De Lucchi é uma das poucas testemunhas da revolução ocorrida nesses segmentos entre os anos 1960 e 1990.
Nascido em Ferrara em 1951, De Lucchi diz que a escolha pela arquitetura deu-se em conjunto com seu irmão gêmeo. Para se diferenciarem, decidiram estudar disciplinas distintas: ele arquitetura e o irmão, química. O detalhe é que ambos sempre gostaram de desenhar. “Meu irmão depois de aposentado assumiu o seu lado artista e encontrou também um motivo para ter o lápis na mão”, revela. A interferência do pai, engenheiro, foi concludente na determinação de De Lucchi que no íntimo sonhava ser pintor. “A revolução estudantil de 1968 foi particularmente vivaz em Veneza e Milão. Meu pai queria que eu fosse engenheiro, mas disse: ‘tudo bem pode estudar arquitetura desde que seja em Florença’, porque Florença naquela época estava em paz”, conta. De Lucchi aceitou rapidamente pois queria sair de Padova, cidade do Veneto, onde morava com a família. Fundamental para a sua trajetória, Florença foi onde teve contato com a arquitetura radical, cujos fundamentos não se baseavam na projetação de objetos ou espaços, e, sim, do comportamento e da vida das pessoas, por meio de performances, happenings e arte conceitual em mostras de galeria de arte. De Lucchi, apresentou aos amigos arquitetos de Padova o conceito da arquitetura radical, criando o grupo Cavart. Em Florença, conheceu Adolfo Natalini, Superstudio, Archizoom e Andrea Branzi, a nata da arquitetura transgressora da época. Graças a eles, ficou amigo de Ettore Sottsass e Alessandro Mendini, com quem viu nascer o grupo Memphis, que revolucionou o conceito de design nos anos de 1980. - Um capítulo importante da carreira de Michele De Lucchi foi o relacionamento com Ettore Sottsass, arquiteto e designer italiano expoente do pós-guerra. Sosttsass foi seu mentor, aquele que o inspirava e instruía em tudo. De Lucchi revela que chegou até a imitá-lo: “Eu vestia as mesmas roupas que ele. Comia o que ele comia. Aprendi a escrever com o mesmo tipo de letra de forma que ele escrevia. De dois a três anos, eu me transferi na sua personalidade”. E explica: “Quando você encontra um mestre que te ensina tudo, encontra gratidão pela vida. Traz segurança, uma sensação de que aquilo que você faz vem de um outro percurso similar, que você o leva pra frente, que tem uma relação direta entre o passado e o futuro”, explica. De Lucchi é testemunha da noite do dia 11 de dezembro de 1980, quando o grupo Memplhis nasceu. Memphis foi um movimento fundado por Ettore Sotssass, que teve como objetivo criar um novo design, um design coletivo, reflexo de um desejo dos profissionais da época. O grupo durou intensos sete anos, tempo em que De Lucchi, assistente pessoal de Sottsass, atuou diretamente no Memphis. Ele era responsável pelas mostras e por todo o processo de produção. - Outra passagem relevante na vida profissional de Michele de Lucchi foi a período em que contribuiu com a Olivetti. Com 70 anos, Ettore Sottsass criou o escritório de arquitetura Sottsass Associati e colocou De Lucchi na Olivetti, que ficou chateado por ter sido o único do grupo a não ter sido escalado para trabalhar no escritório. Na verdade, Sottsass estava doente, precisava se tratar nos Estados Unidos, e confiou o seu maior cliente a Michele, que prestou consultoria à Olivetti até 2002. E foi na Olivetti que aprendeu a projetar com olhos para o futuro. “Isso foi muito útil. No design e na arquitetura, não se pode olhar para trás”, conclui. - Uma das grandes paixões do arquiteto Michele de Lucchi é desenhar e trabalhar com as mãos. Ele confessa que não é capaz de desenhar no computador, mas diz que desenha à mão tão bem quantos seus colegas que usam o computador para projetar. “Desenhar a mão é mais espontâneo, mais autêntico. Você é verdadeiramente mais direto a representar o que está na sua cabeça. E esta relação direta entre pensamento e desenho é muito útil. Quando desenho tento não pensar muito, pois assim entram influências estranhas, que são as melhores, as mais inteligentes, as mais surpreendentes. Tanto é verdade que muitas vezes eu me surpreendo com os desenhos que faço e digo: ah, esse fui eu que fiz”, Mas Michele não fica só no traço. Ele é meio Leonardo Da Vinci que gosta de inventar e fazer arte e de colocar a mão na massa. Com a dissolução do grupo Memphis, abriu a Produzione Privata, uma empresa criada para desenvolver com liberdade seus produtos sem compromisso comercial. Já a Art Works é outro braço de suas atividades em que se dedica a objetos de arte. Em 2019, o arquiteto Michele De Lucchi decidiu reorganizar seu escritório, transformando-o em um estúdio multidisciplinar, onde não existem hierarquias. “Hoje, fazer arquitetura independente de outros setores, não há senso. Eu queria que o estúdio fosse mais independente e não me tivesse sempre como referência”, explica como nasceu o AMDL Circle. Renomado em nível internacional por seu cunho humanístico, o AMDL Circle atua também no design de interiores, design de produtos e comunicação. Circle colabora com grandes corporações como Sanpaolo, Deutsche Bank, Novartis e UniCredit, e tem projetado edifícios e sistemas expositivos para instituições como Neues Museum de Berlim, a Triennale di Milano, Gallerie d'Italia em Milão, Turim e Nápoles. O estúdio também projeta luminárias, produtos e mobiliários para clientes como Alessi, Artemide, Cassina, Hermès, Poltrona Frau e UniFor. É composto não só por arquitetos e designers, mas por profissionais de diversas áreas que se conectam para identificar ideias para o futuro, ajudando a desvendar questões do mundo atual. O resultado dessa congregação de ideias são as Earth Stations, projetos de pesquisa visionários que tocam tanto pontos da arquitetura e quanto da sociedade atual, como educação, ambiente, moradia, sustentabilidade e até fertilidade. “A sustentabilidade sem a fertilidade não tem sentido. Um planeta feito de areia não serviria para nada”, reflete.