Gal de todas as capas
O produtor musical, jornalista e curador Mauro Preto analisa a contribuição das capas de discos de Gal Costa para a arte popular brasileira
De que forma a sua admiração por Gal o fez se dedicar à produção de gravações e shows? Marcus Preto -Na verdade, tudo começou com Tom Zé, em 2013. Eu trabalhava na “Folha” e frequentava a casa dele todas as manhãs de quarta-feira a fim de fazer uma biografia. Certo dia, encontrei o cantor deprimido com a má repercussão da locução que ele havia feito pra um comercial da Coca-Cola. Os proto-canceladores bradavam nas redes sociais que Tom Zé estava “vendido ao imperialismo” (juro!). Dei a ele a ideia de recolher os xingamentos publicados nas redes e reverter em uma canção. Sugeri que incluíssemos bandas da nova geração de então (O Terno, Filarmônica de Pasárgada, Trupe Chá de Boldo) pra fazer a base instrumental e o Emicida pra uma participação especial. Com a turma reunida, o material cresceu, tínhamos quatro faixas prontas e mais meia dúzia de outras começadas. Fizemos o “compacto duplo” (prensamos em vinil) “Tribunal do Feicebuqui” e, no ano seguinte, o resto do material virou o LP “Vira Lata na Via Lactea”. Minha vida de produtor e diretor artístico começou com Tom Zé, portanto. Gal veio em seguida e foi de novo o jornalismo que me levou à produção musical. No mesmo 2013, fui procurá-la a fim de fazer um documentário sobre o “Fa-Tal”, pois eu tinha descoberto, no acervo da cinemateca, o bruto de filmagens de Leon Hirszman daquele espetáculo de 1971 (ele filmou mais de uma apresentação). A conversa foi ótima e a cantora topou o documentário logo de início. No decorrer da conversa, perguntei dos planos dela pra um novo álbum e acabei sugerindo coisas. Ouvi dela: “Gostei! Então você vai ter que trabalhar”. Fui fazer um filme (que nunca aconteceu), acabei fazendo discos e shows com uma das figuras mais importantes da minha formação. No ano que vem, completaremos 10 anos dessa parceria. Eu jamais poderia imaginar. Que balanço você faz de seu trabalho ao lado de Gal? Desde aquela primeira conversa com ela em 2013, o plano era mantê-la conectada com o presente, com a produção musical contemporânea. Desde meados dos anos 1990, Gal vinha de muitos álbuns retrospectivos, em que relia os clássicos da MPB e da própria obra. Em “Recanto” (2011), com repertório basicamente inédito composto por Caetano Veloso, essa fase foi quebrada. O ideal era não voltar a ela, mas seguir adiante. Fizemos isso desde o primeiro momento, com dois álbuns de canções totalmente inéditas que uniam os medalhões da geração de Gal - Milton Nascimento, Gilberto Gil, Djavan, Caetano, Erasmo Carlos, Antonio Cicero - com nomes da nova e novíssima geração - Criolo, Silva, Céu, Tim Bernardes, Mallu Magalhães, Marília Mendonça, Marcelo Camelo, Emicida. Assim foram “Estratosférica” (2015) e “A Pele do Futuro” (2018). Na pandemia, por questões de logística que acabaram por se tornar também conceituais, fizemos o primeiro álbum de regravações, “Nenhuma Dor” (2021). Mas, mesmo nesse, ela faz duetos com novos artistas. Essas pontes são fundamentais pra o diálogo entre as gerações. Tanto que Gal é headliner de quase todos os festivais nacionais, estamos indo pra o Festival Breve no sábado, depois teremos o Rock the Mountain, em Itaipava, o Coma, em Brasília, o Coala, em São Paulo, o Universo Spanta, no Rio, e vários outros em processo de assinatura de contrato. A tarde de autógrafos desta fotobiografia deixou claro: o público jovem chegou junto. Quase só tinha garotada na casa dos 20 e dos 30 naquela fila. O público mais velho segue fiel, mas prefere os shows em teatro, o que ela também tem feito com bastante frequência. No novo show, “As Várias Pontas de uma Estrela”, há repertório de interesse de todas essas gerações. Qual a importância de Gal para a inovação do canto brasileiro? Há quem diga - acho que foi Arnaldo Antunes, entre outros - que Gal é a primeira cantora “moderna” da música brasileira. É certamente a primeira a colocar a escola de João Gilberto - em que a emissão se sobrepõe à interpretação - pra gerar a roda da música pop. Ela se tornou logo uma escola. Até hoje, pode-se dizer de uma jovem cantora: “essa vem de Gal” ou “essa vem de Elis”. São as duas maiores referências pra o canto feminino brasileiro - e, depois da experiência com os duetos no álbum “Nenhuma Dor”, eu diria que ela também é uma referência pra o canto masculino. Silva e Zé Ibarra, por exemplo, se mostraram discípulos de Gal. Se compararam Marisa Monte a Gal no final dos anos 80, Dora Morelenbaum, que tem 20 e poucos anos e acaba de lançar um trabalho solo, é a Gal do “Cantar” nos anos 2020. Marina Sena é Gal pop (e ela fala em Gal o tempo todo, é engraçadíssimo). Roberta Sá é a Gal do “Gal Canta Caymmi”. São várias. E a escola segue se renovando. É interessante que uma artista tão interessante visualmente nunca tenha tido um álbum de fotos como a que vocês produziram. Será devido à timidez proverbial dela? São vários os fatores. Mesmo quando a artista Gal Costa está em fase retrospectiva, a pessoa físical tem uma personalidade muito conectada ao presente, ao aqui e ao agora. Tanto que não guarda nada do que fez: nem LPs, nem revistas, nem fotografias, nem gravações, nada. Eu fico desesperado, porque sou o contrário disso, quero documentar as coisas. Mas ela está sempre no agora, é da personalidade dela. Creio que vem daí a coragem pra os tantos saltos que ela já deu durante a carreira, as mudanças estéticas radicais, os rompimentos, os retornos. Embora goste de sua própria história e perceba a grandeza do legado, ela não se apega tanto ao que já fez. Um livro como esse, portanto, nunca esteve nos planos dela. Fomos nós que nos movemos pra que ele acontecesse. De minha parte, acho fundamental que artistas brasileiros tenham esse tipo de cobertura, algo tão comum no mercado de música internacional. Esse é o primeiro passo de muitos outros livros que ainda precisam acontecer: biografias, fotos, análises estéticas, comportamentais, sociológicas, livros de moda. Espero que outros autores entendam que a porta ficou aberta. Como surgiu e evoluiu o projeto? Partiu de uma ideia de Kati Almeida Braga, dona da Biscoito Fino, atual gravadora de Gal. Começamos do zero, já que Gal não tem nada, não guarda um álbum de fotos sequer. Anunciamos nas redes dela que faríamos o livro e algumas coisas incríveis apareceram, fotos inéditas, gente com material raro. Renato Vieira foi atrás de acervos oficiais, reportagens de época, fotos em acervos de revista e jornal etc. Fizemos uma rapa nos acervos pessoais de amigos de Gal. E juntamos um bocado de imagens relevantes, que davam conta de atravessar toda a história profissional dela. Junto com Leonardo Lichote, fiz uma linha do tempo sublinhando os principais momentos da história de Gal, desde antes de ser cantora profissional. E fomos preenchendo com fotos e textos. Descobrimos as lacunas e, daí, com foco, fomos atrás de fotos que já conhecíamos pra preencher aquele determinado período que estava descoberto. Creio que todas as fases foram contempladas, desde a menina que queria ser João Gilberto de 1965 até a mulher de 76 anos de 2022 (há fotos do novo show, que está em cartaz no momento). A ideia era que o livro fosse pop, de leitura divertida, sem grandes ensaios filosóficos ou delírios literários. Gal sempre foi uma estrela pop e o primeiro livro sobre ela tinha que seguir o mesmo caminho. O projeto gráfico de Omar Salomão (filho de Waly) foi decisivo nesse resultado. Qual a importância de Gal para as capas de vinil, suas fotos ousadas, que tanto fizeram furor nos anos 1970? Elas marcaram mudanças de padrões estéticos e, sobretudo, comportamentais. Em muitos casos, ampliaram o campo de compreensão da própria música que embalavam. A capa do “Índia” costuma ser a mais citada, a que ganha prêmio em todas as listas de melhores capas da história da música brasileira. Mas essa não é a única memorável. Minha predileta é a do “Legal”, feita pelo Helio Oiticica. É uma obra de arte tão potente quanto o próprio LP. Destaco também a do “Fa-Tal”, criada por Luciano Figueiredo e Óscar Ramos, e a do "Cantar", feita pelo Rogério Duarte. Nomes fundamentais das nossas artes plásticas fazendo capa de disco, um luxo que a gente vê bem pouco hoje em dia.