O ateliê-verso de Raul Mourão
O artista carioca conta como manteve uma trajetória ascensional, indo de encontro aos seus companheiros de geração dos anos 1980. Seu segredo: levar a rua ao ateliê e vice-versa

Raul Mourão pode ser descrito como um dos representantes mais resistentes de uma geração de artistas que prodigalizou talentos, mas os dispersou em descaminhos e dilemas. Sua criatividade é extraordinária e aparentemente inesgotável. Além disso, conseguiu manter uma trajetória de ascensão incomum – o que faz com que possa ser confundido como uma espécie de artista conservador mesmo pertencente a uma época de milhões de atrevimentos. “Conservador” no sentido mais transcendente de um termo que está deixando de ser tabu na arte contemporânea, ou pós-moderna, como alguns teimam em usar. Nesse traço inesperado reside justamente o seu segredo, conforme revela em depoimento a FLO com roteiro, direção e edição de Felipe David Rodrigues e entrevistas colhidas por Emílio Domingos. “Desde o início de minha trajetória, quis afirmar o cruzamento das mídias”, afirma, em seu ateliê na Lapa carioca, onde trabalha há quase 30 anos, sempre aberto ao público, visitantes, críticos, colecionadores e colegas. “Comparecem no meu trabalho linguagem que se misturam, ora convivendo lado a lado, ora parecendo conflitantes, às vezes mais harmônicas. Tudo isso tem origem na prática de ateliê.” Um espaço, define, voltado para receber informações externas, processá-las e devolvê-las ao mundo. É o que um crítico poderia chamar de “ateliê-verso”, local em que múltiplos universos artísticos se encontram, se encaixam, mas também se entrechocam. No fim de março de 2023, encerrou uma trilogia estreada em meados de 2020, no início da pandemia de Covid-19, com a exposição "O Maior Carnaval do Mundo", em Salvador. Dois anos depois, em 2022, após muito enfrentamento consigo mesmo e as dificuldades do momento, foi a vez de Belo Horizonte abrigar "Evite Acidente". Por fim, completou a tríade, "Raul Mourão Abre o Jogo", na cidade natal. Trata-se do resumo de quatro décadas de carreira e um total de nove eventos, entre exposições e mostras começadas em 1987. De fato, confessa, as exposições nunca acabam, pois se emendam uma à outra até recuar à alma mater da oficina de criação. Por isso, a abertura do jogo de sua arte se expressa na seguinte declaração: “A ideia de trazer o caos do ateliê ao cubo branco da galeria.” Assim, discorre, o ateliê possui um caos que pode subverter de certa forma ao ser trasladado e traduzido à exposição, lugar de ordem e classificação. “O ateliê é o espaço em que o antigo conduz ao novo, o que dá certo convívio com o que não deu certo. É o lugar da experiência constante, polifônico por que várias vozes disputam o protagonismo. E isso em uma situação em que um prego altera o espaço que um quadro ocupa na parede, ficando de lado, apesar de importante, outro trabalho no chão encostado na parede”. Algo evidentemente banal em qualquer ateliê, mas que se torna insólito no espaço expositivo. Felizmente, o visitante pode frequentar a mostra incessante no ateliê junto á rua Joaquim Silveira, na Lapa, centro do Rio de Janeiro, coração do bairro boêmio, endereço que para ele não só teve importância em sua vida artística, como por ser simbólica, “É a rua, é o bairro mais brasileiro do Brasil”, afirma.